o vaso

billa brambella
4 min readApr 27, 2020

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virginia creeper, Rurik Dmitrienko // still life, Renata Zarzyka

peguei uma mudinha no jardim da minha mãe de uma dessas plantas que caem. eram três ou quatro fios dum cabelo cheio. deitei na água. plantei na terra, um vaso pequeno, brotou. bem rápido, e já não cabia mais na mesma fôrma. com mais espaço foi crescendo, em pouco tempo caíam as tranças. aquele vaso se transformou num cálice de algo vivo. taça d’água. panela cheia d’água, vinagre, açúcar orgânico, especiarias: pimenta termoativa pra aquecer o corpo, cravo pra dar um cheiro, alecrim e louro seco, sorte, saúde, proteção, erva doce pr’acalmar o pesadelo. o processo de fermentação do alimento.

o vaso cheio cabelos nos ombros caídos, chamei de deméter, deusa da fertilidade.

eu e deméter mudamos de casa. antes ela ficava pendurada no teto do quarto, solitária como no alto de uma torre jogando suas tranças. agora ela fica lá fora na mureta do nosso pequeno jardim de cidade. engraçado como os gatos gostam de brincar com o conteúdo dum vaso qualquer. às vezes a filhote dorme dentro. ventre de terra molhado de água quente de sol. às vezes se enroscam nos fios e levam pro resto da casa pedaço de planta. um caiu em outros dois vasos por acidente e brotou, se adaptou bem com as folhas raízes outras que vivam ali. ela alcançou o chão, se esparramando toda. não demorei a perceber da janela do meu quarto que o ralo do quintal por fora do prédio brotou.

aqui em casa temos um cano que floresce à toa pra fora do esgoto em busca de sol. me lembra todas as Coisas que já caíram na minha poesia. as sereias que te arrastaram pro fundo, a criança que nasceu do buraco aberto da mãe, as palavras que foram ejetadas pra baixo como excremento do corpo em fim de festa, o que escorreu e escapou pelos meus dedos, a queda de bicicleta, o sangue escorrendo do ralado dos joelhos, o sangue da fenda, quando troquei o tempo no revés. a linguagem iluminou. deu contraste contorno consciência. con deve ser como ad em latim só pode ser conjunta e adjunta como se ser junto fosse a expansão e dilatação do eu como a deméter existindo consigo mesma em partes diferentes do espaço. a memória é um bom exemplo disso.

como se tudo o que morresse fosse pra nascer noutro lugar ou outro tempo (a música da pitty falava sobre isso). e esse processo transformasse momento em memória e o resto em terra fértil. o grito engolido volta pela garganta. grito palavra no mundo. as palavras nos muros da cidade. a simbologia toda dos filmes de terror da mão saindo do escuro. o desconhecido é o escuro. a mão toca e é verbal, é ação, a mão só se move, um impulso natural que te traz pra presença. pula na minha mente o ato e então atuar vira nada mais que um movimento entre tempos.

entretempos é uma quarentena. brincadeira. sinto saudade do teatro. sinto saudade de andar na avenida dos ratos. é muito. ouvir meus vizinhos vivendo, a alta sensibilidade, o faro de canina, o terceiro olho, os sonhos e pesadelos, meus antigos hábitos, as vozes ecoando no telefone, as imagens se repetem, se misturam, a senhora se transformando em criança, o homem passando na rua de madrugada, ouvir as batidas na porta, alguém tentando entrar mas eu não vou deixar você entrar na minha casa, não na minha caixa. o medo de ser invadida é violento. corre na espinha quem tem bct sente o arrepio a dor n’alma. assombra. dentre esse outros pesadelos. mas há outros sonhos também.

estou na china, estou nadando n’água, estou olhando pros olhos seus, estou por algum motivo fazendo o ensino médio de novo, estou revendo meus professores que tanto me ensinaram, estou na minha antiga escola lembro logo da laíde que ficava tomando conta do portão. esses dias vi uma pessoa morta na viela que passava todo dia indo de casa pra escola da escola pra casa. um morto em cima dum colchão, tinha sangue. uma incisão. tentavam me tirar uma Coisa minha. é por isso que sou de falar com os anjos e demônios. ou é por falar com anjos e demônios que vejo Coisas? start listening at 3:09. a lua sussurra… pros lunáticos ouvirem. escolho deitar meus próprios poemas numa frequência baixíssima. e medito. e me encontro. encontro o que me guarda. sei o que me ameaça. esse saber é o meu remédio envenenado. enfrento de fronte e o que já foi escrito se dilui no límpido lago até virar semente.

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billa brambella

gosta de rasurar sua existência, falar de mulher, de filme de terror, pensar em novos lugares, beber vinho barato e causar incômodo