escritos contaminados #2: então eu saí.

billa brambella
3 min readMay 9, 2020

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contrariando todas as regras de civilidade e cada uma das normas higiênico-preventivas do nosso tempo, saí sem olhar pra trás, no bolso só a chave de casa e um papel dobrado, no pulso o relógio casio de plástico preto relíquia duma infância digital marcava 23:39. a cidade desértica. silenciosa como jamais foi. mais cinza do cinzume que teria sido até então, parecia pálida como um doente. eu também, acinzentada de tanto tempo, fazia tanto tempo. um tempo que eu não teria daquele momento em diante, quando percebi que não tinha mais volta.

se bem que, era relativo. o tempo mudou bastante desde aquela época. a mentalidade, a lógica tinha sido praticamente invertida. o relógio quase não fazia mais sentido se não fosse pelo valor sentimental que dava às coisas, às coisinhas suas pequenas posses. eu precisava daquele pequeno sinal de normalidade. daquele pequeno sinal de que, mais cedo ou mais tarde, viria outro dia… ou quase isso.

naquele momento, eu não podia ser vista.

não tinha permissão para estar ali. apenas as ambulâncias, caminhões de bombeiro, e entregadores tinham livre acesso às vias, eram controladas pelos militares. a regra era clara, os moradores, aqueles que restaram, não podiam sequer pensar em ultrapassar o raio de 3km demarcado à partir da paróquia do bairro. eu corria risco. para sua segurança, o ideal é que não bote o nariz pra fora. a gente foi entendendo que era melhor mesmo. assim, aprendi a observar através dos sons que vazavam pelas janelas.

por mais que tudo aquilo tivesse começado naquele mesmo dia, eu sabia ouvir como se tivesse passado a vida inteira esperando pra saber que podia virar naquela esquina porque não haveria ninguém.

eu desconfiava… eu tinha medo de que…

é que nada disso passa na tv. há algum tempo não transmitem mais notícias. houve um breve período em que os noticiários de todos os canais alertavam insistentemente para que as pessoas não saíssem de casa, ou de onde quer que estivessem. e assim foi. no começo a gente meio que nem ligou, era o descanso necessário pra uma máquina cansada. sentamos no sofá e esperamos passar. o pânico foi se revelando através dos dias que já não mais viravam. fomos esquecidos numa noite que nunca acabou.

o mundo deixou de ter importância na esfera íntima, daí já não se fazem mais as notícias. os programas que foram gravados anteriormente continuam em reprise, seguindo os protocolos de normalidade. ninguém sequer menciona o Antes. ensolarado Antes, nós andando na praia, nós na pracinha fumando um na tarde de domingo, pegando busão pra visitar cachoeira. indo na sorveteria tomar sorvete de flocos. é uma memória ofusca, empoeirada, confusa feito sonho. é como se nada disso tivesse realmente acontecido. como se eu tivesse criado.

depois de anos aglutinados numa só unidade de tempo “dia”, fomos nos adaptando como um gato doméstico que ao longo dos “dias” percebe que o dono não se move mais. o gato precisa comer. o brasileiro precisa abaixar até mostrar o cu peludo na calcinha. precisa se humilhar por dignidade. assim começou a carnificina.

mas eu sei que os anos se passaram porque meu casio nunca parou de funcionar. e também porque não parei de envelhecer. eu tentei acreditar até que. já não ouvia barulho qualquer na minha vizinhança, que costumava ser tão barulhenta. os barulhos foram crescentes. até que cessaram. nenhum tiro. nenhum grito.

eu desconfiava. cada vez mais. eu sentia o mesmo medo desde que começou. meu tino. meu faro.

seria

eu?

e as vozes na minha cabeça. nesse raio de 3km.

por isso eu precisava saber. preciso saber se ainda existe vida fora de lá. eu preciso respirar. um ar. livre.

meu pequeno casio apita. meia-noite.

feliz aniversário. hoje fazem 17 anos que o sol não aparece no céu sobre são paulo.

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billa brambella

gosta de rasurar sua existência, falar de mulher, de filme de terror, pensar em novos lugares, beber vinho barato e causar incômodo