escritos contaminados #1 (covid19)

billa brambella
2 min readMar 24, 2020

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um gole no café. rolando a timeline. na frente da janela. chorinho, eu sei tu tá aí na sua casa. todos estamos. cada um na sua. eu espero tanto meu telefone vibrar. dizendo algo interessante ou qualquer Coisa. e se a gente ligasse a cam. desse uma espiadinha. do outro lado. a grama do vizinho. diziam que é verde mas agora é bit.

meu vizinho de porta é careca e a tv dele tá ligada o dia inteiro em programa de fofoca. eu assisto o dia inteiro a vida deles. o que acontece do peito pra cima. pela tela, pela janela. ontem eles fizeram frango frito. não sei bem quem foi. pra mim, são os outros. os anônimos que dividem esse espaço com a gente.

só senti o cheiro.

conheço bem os cheiros mas muito pouco as situações. sei quando você tocou na nóz moscada. quando os gatos esfregaram a fuça no alecrim do quintal. de resto, minha imaginação. tenho sentido por aí o que posso chamar de cheiro de palco, cheiro do percurso entre o número 1 e o 1845 dessa Avenida Empoeirada, cheiro de presente. lembra dos cheiros da infância? sei que quando voltar a ler isso, vou sentir de novo como se fosse hoje um momento também outro. de’ʒa vy. será que nossos fantasmas também sentem?

tenho sentido esse texto perder a força ao se derramar ao longo das linhas. desfalecer entre os meus dedos.

além de você, mais alguém tá aprendendo a tocar gaita. eu te ouço aqui e a outra pessoa lá nessa conversa aguda entre íntimos desconhecidos.

o dia entardecendo rosé quase beje. uma coruja que só existe dentro de mim me olhando e olhando e olhando. tô aqui pensando, tô aqui te escrevendo sem. vai saber se é pandemia, se é distopia. dá vontade de ver o ensaio sobre a cegueira. de fazer um bolo e ir comendo ao longo dos dias. esperar ele embolorar pra ficar triste e lamentar o pedaço que não comeu.

eu estava sentada só esperando. olhando o careca e olhando e olhando. por curiosidade. por tédio. por viver em cidade. em algum momento ele olhou de volta pra mim e esse gesto mínimo quebrou a quarta parede.

e se você, daqui do texto, me olhasse de volta?

por vezes o problema é a invenção. por vezes o problema é o ao redor ser muito real. que a nossa geração tenha crescido e tenhamos nos tornado adultos infelizes. superficiais. não sou uma simples fingidora, de poeta sou uma máquina impostora. sou uma versão decadente do meu próprio desejo. da voz que tenho no mundo. platão riria tanto dessa tragédia: nós vivemos no futuro natimorto e a guerra fria nunca acabou.

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billa brambella

gosta de rasurar sua existência, falar de mulher, de filme de terror, pensar em novos lugares, beber vinho barato e causar incômodo