adília mihi est

billa brambella
9 min readMar 21, 2020

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antologia pessoal da poeta adília lopes

.adília.

notas da editora: lembra que rapariga em português de portugal, país de origem da autora, significa mulher. esse post está sujeito à eventuais alterações (entre hoje e amanhã há de crescer e engordar como um gato). me interessa que vocês também grifem, a troca é genial. estou lendo sua obra completa e esse é meu fichamento público, já que devo devolver o livro em breve, aqui ficam as poesias que conversam comigo. e eu fico aqui a conversar com elas, essas vozes todas da adília ecoando no quarto de uma jovem 40 anos depois. mulher, que escreveu sobre ser mulher, ter gatos, amar, ser abandonada, abandonar-se, amar e desejar mulheres, não se adequar aos papéis, à normalidade social da psique, sobres q’eu escrevi também e tantas outras versinhas deliciosamente banais que nem passaram pela minha cabeça mas que me sorveram. eu te leio releio em voz alta, querida adília, mihi est.

o gabinete de penitência

eu fazia a correr e às escondidas
as coisas mais inocentes
por isso fui punida
fecharam-me numa casa chamada
Gabinete de Penitência
deram-me uma tesoura e uma folha de papel
vai dobrar a folha de papel
e recortar meia menina
com as pontas dos cabelos viradas para fora
com uma saia
com mãos
com pés
quando abrir o que recortou
verá duas meninas
ligadas pelas pontas dos cabelos
pelas pontas das saias
pelas mãos
pelos pés
dobrei o papel em quatro
recortei meia menina
quando abri o papel
as duas meninas estavam separadas
a menina fez batota bem vi
mas vai aprender a fazer dobragens
para se penitenciar
cortando-as

arte poética

escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

o luna parque

eu julgava que aquilo era
um Luna Parque
saía-se como se entrava
e não acontecia nada irreversível durante
é o que é um Luna Parque
quando se é adolescente
mas não
quando dei por mim
já estava lá dentro
e não me lembrava de ter entrado
quando disse agora quero-me ir embora
riram-se ah minha rica
deste Luna Parque não se sai
quem cá vem, não volta
não se volta atrás
então comecei a pensar
que ia passar o resto dos meus dias
no Luna Parque
acabas por aprender vais ver
a fazer das tripas o coração
habituas-te vais ver
nos primeiros tempos dói
dá vontade de vomitar
depois percebe-se que
no Luna Parque
que é um sítio triste
pode não se ser triste
sai muito caro
mas poder pode-se

um quadro de rubens

vi-me comoprimida
num ajuntagente
ora eu só suporto pessoas à distância
de preferência com uma mesa de permeio
acontece que uma mulher foi projectada
para cima de mim com um cigarro aceso
há pessoas que vão para ajuntagentes
fumar cigarros!
ora eu temo as queimaduras
muito por sua vez caí por cima de uma mulher
que era um sex symbol depois
de sofrer uma homotetia de razão
superior a 1
há pessoas que vão para ajuntagentes
com dez alcinhas!
era o caso do sex symbol
o vestido tinha três alcinhas
de cada lado
e os soutien alças em duplicado
se caio para baixo passam-me por cima
a única saída é sair por cima
disse de mim para mim
as pessoas do ajuntagente
reparei eu então
eram feitas aos degraus
comecei a subir pela que estava mais perto
era uma mulher
dei por isso quando começou
a gritar
a menos que fosse
um contratenor
mas alguém teve a mesma ideia
que eu
e começou a subir por mim acima
ora eu sou intocável
agora já nem consigo
dizer nada de mim para mim
o de mim para mim acabou
não há lugar para mim
num quadro de Rubens

as flores de papel

porque é que dizes que ela
passou o jantar todo a insultar-te?
tu não viste nada
na rua José Falcão
tu não tens o sentido das proporções
ela só falou de flores de papel
e depois? que mal tem isso?
tu gostas de flores de papel!
disse isso para me ferir
tu não viste nada
na rua José Falcão
isso é impressão tua
que importância tem gostar de flores de papel?
tu não viste nada
na rua José Falcão
tu não sabes o que quero dizer
gostar de flores de papel
e o que é gostar de flores de papel?
não digo mas deves perceber
que quando ela disse que eu
havia de passar a vida a fazer flores de papel
estava a insultar-me
mas tu fazes flores de papel!
mas tu sabes que ela me deu
um livro que ensina a fazer flores de papel
e depois?
era para me dizer que eu não sei fazer
flores de papel
e sabes o que ela me disse depois?
é serem próprias para o cesto dos papéis
e não se saber quando é que se devem
deitar lá
e o que te importas isso? continua a fazer flores de papel
mas como é que tu podes falar
de flores de papel se não saber
o que são flores de papel?
tu não viste nada
na rua José Falcão

*

os poemas que escrevo
são moinhos
que andam ao contrário
as águas que moem
os moinhos
que andam ao contrário
são as águas passadas

*

ninguém me diga que as coisas são simples
e minha história é tão complicada
que não se conta o que vou contar
a seguir é outra história pois
o João parece que está muito afeiçoado à Maria
ouvi eu dizer quando ia no autocarro
ele desde pequenino que gosta muito de cobras
foi então que eu dei pela rapariga
que já lá estava
nunca mais volto a encontrar
e então lembrei-me
de que ela era uma rapariga
com carnação de magnólia
que abre a janela do compartimento
não lhe desagrada o ar?
a voz é rápida e ri
não a incomoda o fumo?
e acende um cigarro
vem escrito no livro juro
apoiava as mãos em concha no cabo
de um chapéu-de-chuva
e o chapéu de chuva era tão magnífico
que se o descrevesse
o chapéu era outro
por isso não o descrevo
digo só que era de um azul amarrotado
se dissesse mais descobriam
de que rapariga falo
e se dissesse verde
a rapariga não era minha
acontece que a rapariga não é minha
como a rosa a rapariga
existe para mim (rosa mihi est)
ninguém possui ninguém
por irmos uma em frente da outra
nos bancos dos palermas lembrei-me
da minha janela à tua
vai o salto de uma cobra
quem me dera o resto
não importa importa
o salto magnífico da cobra
é esse salto que devemos tentar ver

o tarantass

no tempo em que se andava de tarantass havia a sobremesa
depois inventou-se o automóvel
Éclair
e furgoneta Dum Dum
os patins Bic
que aboliram as distâncias
entre o desejo da sobremesa
e a degustação da sobremesa
e deixou de haver sobremesa
o problema do mundo actual
(os que não comem nada
não têm os problemas do mundo actual
têm os problemas do outro mundo)
é ser um mundo sem sobremesa
é o mundo da papinha feita
quando a papinha não está
feita faz-se
uma anestesia local ou geral
para comer a sopa
as crianças sentam-se à mesa
e começam pela sobremesa
ora uma refeição que começa pela sobremesa
não é uma refeição
e como só faz sentido falar em sobremesa
a propósito de refeições
não faz sentido falar em sobremesa
como a sobremesa dos pais
era poderem privar os filhos
da sobremesa
deu-se uma acentuada baixa de natalidade
o mais curioso
é que continua a haver
sopa e dois pratos
só que vêm depois
da sobremesa
por isso as crianças
já não lher chamam
sopa
nem prato de peixe
e prato de carne
e ainda é pior
porque as refeições
continuam a ser repressivas
e não sabendo o nome
do que comem
as crianças não se podem defender
da repressão chamando nomes
que não me tomem no entanto
por uma apologista do tarantass

as rosas com bolores

tenho sempre perto de mim
geralmente na minha mesa de cabeceira
um ramo de rosas
todas as manhãs a primeira coisa
que faço quando acordo
é observar atentamente as rosas
a ver se algum bolor poisou
na pele das rosas
quando isso acontece
é muito raro
mas eu gosto de coisas preciosas
e sou paciente
deixo de dormir
para observar o crescimento
desigual e lento do bolor
a pouco e pouco o bolor
vai cobrindo a pele da rosa
ou antes
alimentando-se da pele da rosa
adquire o feitio da rosa
mas a pele da rosa
não está por baixo do bolor
desapareceu
é preciso estar sempre atenta
porque no instante em que
o bolor não pode alastrar mais
a não ser alastrando-se sobre
si próprio
e alimentando-se de si próprio
ou seja suicidando-se
naquele acto de infinito amor
por si próprio
que é afinal todo o suicídio
a rosa pode andar pelos seus pés
antes de ela partir
beijo-a na boca
depois ela parte
e desaparece pra sempre da minha vida
então eu vou dormir
porque estou muito cansada
as rosas com bolores cansam-me

*

eu tinha visto essa mulher
que tinha no olhar um ardor de fêmea
maligna
perder todo esse ardor e partir
na parte de trás da furgoneta dos cunhados
com um olhar baço de rês a caminho do matadouro
ela que tinha feito três ameaças de morte
à minha tia-avó
que por três vezes me tinha metido
meia-dúzia de baratas na cama
entre os lençóis
e por duas vezes tinha posto no corredor
pequenos ratos mortos
para eu pisar quando ia
à cozinha beber água às escuras
parecia esvaziada do espírito
que a tinha habitado durante anos
uma tarde antes do crepúsculo
entrei no quarto dessa mulher
parei em frente do espelho do bengaleiro
e abri a caixinha na penumbra
encontrei nela um terço despedaçado
e madeixas de cabelos meus
misturadas com alfinetes
compreendi tão claramente o mundo
que foi impossível contá-lo depois
onde podia estar o espírito
daquela mulher senão em mim?
tomava consciência dos meus poderes
foi assim que encontrei o livro
do Dr. Guilherme Cullen
onde os ss são ff
e o S um S esticado
a Secção Terceira chama-se
Das Vesanias
e está subdividida em
Da Mania e Da Melancolia
eu não lia só as palavras
do Dr. Guilherme Cullen
lia tudo (mas tudo)
por exemplo os orifícios simétricos
abertos pelos bichos que roem o papel
estes orifícios são obscenos
como a Capela dos Ossos
porque são simétricos
entre a encadernação de couro
e a capa de cartão
havia um papelinho vermelho de Carnaval
percebia perfeitamente o que o papelinho
queria dizer
estava na capa do fim do livro
em baixo e
do lado de dentro
como não podia deixar de ser

*

o meu coração está ao meio
em substituição da cara
(quem vê corações
não vê caras)
cravejado de setas
amparado por duas meninas velhas
anjinhos amarelos
sangra
as feridas do coração
choram lágrimas
de cera

o meu coração está no centro da Terra
está no coração do gato
tem duas asinhas de mariposas brancas
está sarado e bate
(sempre ao meio)
as feridas suturadas
têm inveja uma das outras
as setas estão arrumadas a um canto
numa poça de cera

fungam as duas meninas velhas
cantarolam os anjinhos amarelos
no segredo do quarto escuro
enquanto meu coração limpa o pó

*

eu realmente falo muito
em raparigas
ora raparigas
haverá excepções
foram sempre muito minhas amigas
da onça
um dia convidei uma
para morrer comigo
hei-de tentar entrar na morte
e dançar disse-lhe eu
ela disse-me o que tu dizes
não se escreve
pois não lhe disse eu
e o que escrevo não se diz
então vamos comer um gelado
eu não vou eu digo
apetece-me um gelado
mas não como disse-me ela
o que é que se pode fazer
com uma rapariga dessa?

Adília publicou, em 1985, Um jogo bastante perigoso, seu primeiro livro de poesia. A seguir, publicou: A Pão e Água de Colónia (1987), O Marquês de Chamilly (1987), O Decote da Dama de Espadas (1988), Os 5 Livros de Versos Salvaram o Tio (1991), O Peixe na Água (1993), A Continuação do Fim do Mundo (1995), A Bela Acordada (1997), Clube da Poetisa Morta (1997), O Poeta de Pondichéry seguido de Maria Cristina Martins (1998), Florbela Espanca espanca (1999), Sete rios entre campos (1999), O Regresso de Chamilly (2000), Irmã Barata, Irmã Batata (2000), A Obra (2000) e A mulher-a-dias (2002), todos em Portugal. Um jogo bastante perigoso foi lançado no Brasil pela primeira vez em 2018, pela Editora Moinhos.

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billa brambella

gosta de rasurar sua existência, falar de mulher, de filme de terror, pensar em novos lugares, beber vinho barato e causar incômodo